O julgamento de Renato Marchesini Figueiredo no Supremo Tribunal Federal, concluído nesta sexta-feira (29), revelou um raro e contundente embate entre ministros da Corte. Pela primeira vez em muitos meses, André Mendonça e Kassio Nunes Marques elevaram o tom e confrontaram abertamente o relator Alexandre de Moraes, que novamente conduziu a maioria à condenação.
O caso envolve a prisão do manifestante no acampamento montado em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, no dia seguinte aos atos de vandalismo e depredação registrados em 8 de janeiro. A divergência aberta, porém, extrapolou o processo individual e reacendeu discussões sobre o papel do STF, os limites de sua atuação e o tratamento dado aos acusados envolvidos nos eventos daquele período.
Nunes Marques: “O STF não pode se arvorar em juízo universal”
A posição mais dura partiu de Kassio Nunes Marques, que se manifestou pela absolvição e criticou diretamente a atuação da Corte no conjunto de processos relacionados ao 8 de Janeiro. O ministro argumentou que não havia qualquer justificativa para que o julgamento permanecesse sob competência do STF, já que não foi demonstrada ligação entre Marchesini e autoridades com prerrogativa de foro.
“O Supremo não pode se arvorar de juízo universal sobre todos os episódios relacionados ao 8 de Janeiro”, afirmou.
Nunes Marques destacou ainda a grande rotatividade de pessoas no acampamento diante do QG e a ausência de provas de que o réu integrava qualquer organização com estrutura criminosa. Segundo ele, muitos manifestantes simplesmente “pernoitavam” no local, o que impediria imputações como associação criminosa ou incitação.
A crítica frontal ao inquérito-mãe, frequentemente usado por Moraes para justificar a concentração de julgamentos no STF, foi interpretada como um recado institucional: para Nunes Marques, a Corte extrapolou suas funções e passou a atuar como instância absoluta nesses casos.
Mendonça acompanha e questiona provas: “Não alcançou o nível de evidência exigido”
Outro voto divergente veio do ministro André Mendonça, que adotou uma linha semelhante à do colega. Para ele, a denúncia era excessivamente ampla, com imputações genéricas e sem individualização adequada das condutas.
O ministro destacou que a doutrina penal exige rigor na comprovação da participação efetiva do acusado em atos ilícitos — rigor esse que, segundo ele, não foi observado pela acusação.
“O nível de evidência probatória necessário para a condenação não foi alcançado”, pontuou Mendonça.
A posição reflete uma preocupação crescente manifestada por juristas: o risco de que pessoas que não participaram dos atos de depredação sejam condenadas por mera presença em acampamentos ou por afinidade ideológica.
Moraes mantém linha dura e diz que o réu aderiu ao propósito do acampamento
Do outro lado, Alexandre de Moraes sustentou a condenação e reafirmou sua interpretação de que os acampamentos em frente a quartéis eram parte de um movimento articulado, com objetivo estratégico de abolição do Estado Democrático de Direito.
Para o relator, Marchesini não era um “simples acampado”. Moraes afirmou que o réu teria aderido “de forma consciente” à causa, incentivando hostilidades das Forças Armadas contra os Poderes constituídos. O fato de ele ter permanecido no local após o 8 de Janeiro foi considerado agravante.
A pena aplicada reflete esse entendimento: um ano de reclusão, convertido em 225 horas de serviços comunitários, além da obrigatoriedade de participação em um curso presencial de 12 horas sobre democracia e golpe de Estado. Também foram impostas restrições como proibição de acessar redes sociais, de deixar a comarca e a manutenção de medidas anteriores — entre elas, suspensão do passaporte e possível perda do porte de arma.
O STF ainda fixou 20 dias-multa e determinou que Marchesini, juntamente com outros condenados, pague R$ 5 milhões em indenização por danos morais coletivos.
Maioria se alinha a Moraes, mas divergência ganha força simbólica
Acompanharam o relator os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Flávio Dino e Dias Toffoli, formando mais uma vez o eixo majoritário em julgamentos ligados ao 8 de Janeiro.
Ainda assim, a contundência dos votos de Mendonça e Nunes Marques chamou a atenção — não apenas pelo conteúdo jurídico, mas pelo tom firme e pouco usual na Corte. O episódio marca uma mudança de postura que pode indicar um novo clima interno no STF.
Analistas apontam que a manifestação dos dois ministros representa:
- Uma tentativa de reequilibrar os debates, evitando que decisões de enorme impacto sejam tomadas de forma automática;
- Um recado político, de que a unanimidade forçada em temas sensíveis não será mais a regra;
- Um marco simbólico, sugerindo que a era de silêncio e alinhamento tácito diante dos julgamentos do 8 de Janeiro pode estar chegando ao fim.
Conclusão: um julgamento que ecoa além do caso individual
Embora o processo trate de um único acusado, o julgamento de Renato Marchesini expôs um racha que vinha sendo contido nos bastidores. O embate aberto entre Moraes, Mendonça e Nunes Marques vai muito além da condenação: ele reflete tensões internas sobre competência, liberdade individual, garantias constitucionais e o papel do STF na crise política recente.
Com cada vez mais casos chegando à Corte, o episódio mostra que a unidade artificial pode não se sustentar por muito mais tempo — e que novos capítulos de debate intenso devem surgir nos próximos meses.
